domingo, 18 de abril de 2010

“QUEM AINDA DISCUTE REVOLUÇÃO?” – CENA 1 – EXTERNA/NOITE – VARANDA EM PARIS 68

são 19 horas em paris. a fotografia é P&B em alto contraste. dois jovens estão sentados na varanda de um prédio aparentemente de luxo, enquanto ao longe se escutam gritos, tiros e explosões. um dos jovens está vestido numa mescla de bob dylan na fase don't look back e um simbolista do século XIX e rabisca em um caderno. do seu lado, usando por cima de sua camisa caleidoscópica uma echarpe, enrola um cigarro o outro jovem. o jovem que está com o caderno (que chamaremos de 'CADERNO' daqui em diante) para de anotar o que quer que estivesse anotando, vira-se para o seu companheiro de varanda ('CIGARRO', como vocês devem ter imaginado) e o fica encarando com uma expressão incrédula. CIGARRO não vê a situação imediatamente, mas quando vai acender o seu cigarro com um fósforo, nota CADERNO e seu olhar. "que foi?" pergunta CIGARRO com um certo espanto, durante sua primeira tragada. "sabe de uma coisa?" diz CADERNO, "eu to me sentindo meio inútil sentado aqui escrevendo". CIGARRO solta a fumaça e olha na direção de onde vêm os sons do tumulto, "é por causa das barricadas? eu tava pensando nisso agora". "não é só por isso, mas também". CADERNO olha para a sua caneta com olhos de desprezo, "enquanto as pedras voam em nome de uma suposta liberdade, essa caneta só me faz mais prisioneiro". "prisioneiro do que?” pergunta CIGARRO, “das tuas ideias? Tu bem sabe que jogar pedras e gritar é proibido proibir não são atos conscientes". ele se levanta, e procura algo em sua volta. acha um cinzeiro e um copo ao lado da cadeira onde estava sentado. leva o cinzeiro e o copo até o parapeito da varanda, bate seu cigarro e continua, "se tu é prisioneiro do pensar, melhor que eles, prisioneiros do agir; sempre subordinados as tuas palavras. a revolução não acontece nas ruas, mas sim nas linhas de um caderno". CADERNO também se levanta, ainda com a caneta em suas mãos como se fosse um objeto de tortura. para ao lado de CIGARRO e pede um pega de seu cigarro. CIGARRO o alcança, porém, a mão para pegá-lo é a mesma que segura a caneta. CADERNO olha para a caneta, para o cigarro, e dá a volta por trás de seu companheiro, parando do seu outro lado, pronto para receber o cigarro com a sua mão livre, a direita. CIGARRO ri esperando que CADERNO o acompanhe, mas ele fica quieto. apenas solta fumaça pensativo. "não é que eu me sinta prisioneiro de minhas ideias, mas sim de minha própria expressão" diz CADERNO, "ambos concordamos que esse mundo está longe de ser o ideal, certo?". "certo", concorda CIGARRO, oferecendo o copo cheio de líquido verde para CADERNO, que aceita e toma um longo gole. "eu não consigo pensar de outro jeito que não seja através de palavras. palavras essas que organizo buscando uma forma e um sentido, para tentar aproximar esse mundo do que julgamos nós ser o ideal" continua CADERNO. "poesia! revolução!" se empolga CIGARRO enquanto busca pela garrafa para encher o copo. "nem poesia, nem revolução" CADERNO decepciona CIGARRO, jogando a baga da varanda. "como fazer poesia, se as palavras que uso são as mesmas usadas para descrever essa realidade insustentável? como fazer revolução, se os valores que nos guiam – justiça, liberdade, igualdade - são valores que nasceram no centro da própria sociedade que queremos transformar? escrever é o ato menos revolucionário que pode existir, pois a escrita não é nada mais do que um eterno repetir das bases de nossa sociedade e dos limites de nossa mente. se lembra da nossa fórmula da revolução?" pergunta CADERNO. CIGARRO prontamente responde, "mas é claro! revolução é poesia, amor e morte. o que tem ela?". "nós acertamos nos termos usados, mas a ordem está errada. na verdade, poesia é que é revolução, amor e morte. a revolução em si não é um fim, mas sim, uma condição para a existência da poesia. ela sim, um fim." CIGARRO fica quieto por uns instantes, quase como em respeito às palavras de CADERNO. enquanto enrola mais um cigarro, vê na esquina que a movimentação dos estudantes começa a invadir a sua rua. ele cutuca CADERNO, que está alheio em pensamentos. "então, bora fazer poesia? a revolução já tá nas ruas, é só descer. a morte, bem, uma morte em meio a massa sempre tem o seu valor". "e o amor?", pergunta CADERNO. "amor a causa?" responde CIGARRO e ambos começam a rir histericamente. a porta da varanda se abre atrás deles e de dentro do apartamento sai uma loira com cabelos de brigitte bardot enrolada apenas em um lençol. "do que vocês tão rindo, hein?", diz a loira, que chamaremos de LENÇOL. "já estou há uma hora esperando vocês lá dentro, e vocês aqui, rindo de mim provavelmente". "nada querida", diz CADERNO. "foi só um assuntinho que surgiu aqui, mas já resolvemos" completa CIGARRO. "vai entrando que a gente já vai". LENÇOL dá um sorriso, manda um beijo e entra. "só não esqueçam dos cigarros e dos copos!" ela grita já dentro do apartamento. CIGARRO e CADERNO se olham por uns segundos, enquanto o conflito entre policiais e estudantes toma contornos apoteóticos na rua, com pedras, fogo e sangue. CADERNO diz pra CIGARRO, "quem sabe não fazemos nossa poesia aqui em cima mesmo? a revolução deixamos pra quem já está na rua. a morte, como sempre, fica por conta da garrafa." "e o amor?" CIGARRO diz, já com um ensaio de sorriso estampado no rosto. "olha, é melhor já ir entrando, por que não é sempre que o amor fica tão bonito enrolado num lençol".

2 comentários:

  1. AMOR, MORTE E REVOLUÇÃO!!!!!!

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  2. bah, cara.. vou me calar ante à excelência suprema desse conto.

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