quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Antropofagia e Resistência

parei pra pensar esses dias o que é a cultura brasileira e o que ela significa para mim. sempre pensei nessa expressão "cultura brasileira" como algo externo a mim, distante e sem nenhuma relevância. por eu ter crescido em um mundo "globalizado" (expressão essa que agora desprezo completamente), me sentia inserido no que pode ser tomado como uma cultura jovem geral, mundial.

para mim, essa busca pelas raízes do seu próprio povo sempre soou chata e retrógrada, primeiro por que eu realmente não sentia nenhum tipo de identificação pelas manifestações artísticas dos confins de um país do qual eu nunca vivi. é uma espécie de resistência preconceituosa, porém nem um pouco infundada, visto que meu contato diário com isso que se habituou de ser chamado de cultura brasileira era zero.

porém, foi ai que comecei a pensar. uma das minhas principais características quando penso, é justamente uma resistência quanto ao que me falam que devo gostar. tu tem que gostar de chico buarque. foda-se, não conheço e não gosto, ponto final. tu tem que te identificar com a cultura brasileira. foda-se, não conheço e não gosto, ponto final.

no caso do chico buarque é fácil fazer isso (não que eu goste ou não goste, é só um exemplo), pois o chico buarque tá ali, tem os discos e a pessoa, tudo exatamente no seu lugar. mas e no caso da cultura brasileira, que é um conceito amplo e totalmente interpretativo? eu sei que a minha resistência vêm do que o senso-comum se habituou a chamar de cultura brasileira, ou seja, paradas quase sempre de caráter rural, folclórico e que dificilmente me dizem alguma coisa. mas, como eu disse, isso é condicionado pelo senso comum, e, se existe uma palavra em que o senso comum nunca pode ser levado em consideração, é cultura. primeiro pela sua própria definição, que desafio qualquer um dos que lerem esse texto darem uma convincente da ponta da língua. e segundo, pela própria substância expressiva do conceito como um todo, que é a arte basicamente, por natureza externa ao senso comum.

a partir dessas minhas divagações, eu comecei a tentar estabelecer o que, para mim, seria o conceito de cultura brasileira. claro que tive por motivação um maior contato com produções artísticas brasileiras, principalmente a tropicália, mas essa pode ser uma discussão que abrange grande parte das coisas que penso no momento. é um bom exercício reflexivo.
mas então, depois de definir que o meu conceito de cultura brasileira (rural, nordestina papapapa) era fruto do senso comum, decidi buscar dentro do brasil, aquilo que corresponde aos meus interesses culturais, ou seja, algo urbano, marginal, subversivo, inteligente, moderno. e porra, te digo que o brasil corresponde de maneira surpreendentemente positiva nesses aspectos culturais.

primeiro lugar, no brasil existe algo, produto do homem ao pensar em si mesmo, portanto cultura, um conceito que provavelmente é familiar a todos que leem esse singelo blog, que é a antropofagia. dificilmente em algum outro lugar do mundo (não sei, não estudei) existe um conceito cultural tão conciso em si mesmo, e que reflita tào bem as características inerentes tanto ao povo em si, como a sua relação com o exterior. a antropofagia proposta pelo oswald de andrade pode ser vista como uma verdadeiro leitmotiv para toda a produçào cultural relevante que se instaurou no brasil depois dele. nele, se pode notar duas preocupações do povo brasileiro em geral, que provavelmente todos temos dentro de nós. a primeira é a nossa insistência de nos sentirmos inferiores a tudo que vêm de fora, nos sentindo incapazes de produzir algo verdadeiramente brasileiro, porém de qualidade superior aos produtos europeus ou norte-americanos. e a segunda é a nossa habilidade em transformar situações adversas em propícias, através de uma criatividade quase subversiva, o chamado "jeitinho brasileiro".

ora, e o que oswald nos propõe no manifesto antropofágico? já que não temos auto-estima suficiente para produzir algo por nós mesmos, vamos comer tudo que os gringos produzem e, usando o nosso famigerado jeitinho brasileiro, vomitar tudo, levando em conta todas as provações e dificuldades misturadas de uma maneira que ninguém vai perceber mesmo, como somos especialistas. pronto, as cartas tão na mesa. é só saber quais usar pra fazer teu jogo.
e realmente, a partir do manifesto antropofágico, todos aqueles que foram inteligentes o suficiente para produzir obras de impacto cultural profundo, se utilizaram dos métodos propostos pelo oswald. bossa nova, tropicália, mangue beat, só pra ficar na música.

então tá, primeiro problema resolvido. cultura brasileira antropofágica OK

mas o que me levou a escrever esse texto não se resumia apenas a cultura antropofágica, mas também a um outro aspecto que eu chamei de cultura de resistência. como todos sabem, o brasil sofre um golpe militar e por 20 anos viveu sob uma ditadura pesada. essa ditadura, agora observando de longe, acabou por ser responsável por uma série de manifestações culturais subversivas por excelência (já que cultura implica pensamento e pensamento implica perigo para uma ditadura) que acabaram por se cristalizar justamente por terem sido criadas sob um regime repressivo.

mas eu acho que essa cultura de resistência, além de ter criado e cristalizado manifestações culturais de extrema importância, ela assumiu um papel também de consciência coletiva, uma clima, um momento que pairava no ar. essa consciência coletiva que os jovens brasileiros da época compartilhavam pode ser vista por um aspecto diferente da cultura, a parte da própria arte em si, que é o aspecto de transmissão de costumes de pais para filhos. antigamente isso vinha na forma de folclore, rituais, religião e etc. para mim (e acredito que para muitos de vocês) veio na forma dessa cultura de resistência, esse afã de questionar o que é estabelecido, essa crítica eterna a quem está por cima, aliados sempre com as características do povo brasileiro.

esse tipo de pensamento sendo transmitido quase que de forma espontânea pelos nossos pais, acaba por tomar proporções de verdade absoluta, assim como acontecia com os rituais em tempos idos. esse tempo, que podia ser confundido com história, se torna cultura principalmente pelo impacto que teve na vida justamente de nossos pais, que nos transmitem essa experiência como cultural. claro que isso no caso de pais urbanos, como sempre foram os meus.

e foram nesses dois pontos que eu consegui encontrar uma identificação extrema para o meu problema de falta de contato com a cultura nacional. foi um exercício pessoal, que pode não se aplicar a vocês, mas como isso sempre foi algo que me incomodou (pq ninguém gosta de ficar se apoiando na cultura dos outros né) eu me vi na obrigação de achar pontos de contato entre o meu país e a minha vida. acho que consegui. e agora posso bradar a plenos pulmões que sou verdadeiro fã dessa cultura nacional, a minha cultura brasileira antropofágica de resistência.

2 comentários:

  1. C-A-R-A-L-H-O.
    Tive de ler duas vezes o texto, para poder assimilar ele como um todo, porque cada parágrafo me remetia a novas idéias e meu raciocínio ia numa linha contra a leitura, assim como em outras partes , a favor.

    muito boa a comparação de cultura passada de pais e filhos, diante do passar do tempo.

    um texto digno.

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  2. ótimo exemplo de subdivisão prismática de uma ideia.

    li e gostei. achei do caralho. tu foi desenvolvendo sem pressa tuas ideias, pra explicar tudo bem direitinho. mas nao ficou um texto longo. sabe? aqueles que tu cansa de ler. e eu gosto muito quanto tu te empolga com as coisas e fica falando falando e falando sem parar (só não curto qnd tô de tpm).

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